Artigo: As viagens de Swift

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Por: Rodrigo Segantini*

Um dos meus livros clássicos favoritos é “As Viagens de Gulliver”, escrito pelo irlandês Jonathan Swift em 1726. Apesar de já contar com quase 300 anos, trata-se de uma obra atualíssima, ainda hoje um marco na literatura britânica e imprescindível como leitura para estudantes, acadêmicos e pessoas que se interessam pela língua inglesa ou por relações humanas. De maneira ácida e lúdica, Swift conseguiu traduzir o que é nossa sociedade contemporânea.

A narrativa conta sobre as vivências de Lemuel Gulliver enquanto visita alguns lugares que descreve. Gulliver viaja para vários países imaginários, com características bem peculiares. No entanto, por algum motivo, a passagem mais conhecida da obra é a ida do aventureiro para Lilipute, onde as pessoas têm em média quinze centímetros de altura e tudo mais também é minúsculo. Porém, o que pouca gente sabe é que, neste trecho da obra, é mencionado como são selecionados os dirigentes deste reino: os políticos devem fazer acrobacias e malabarismos e são eleitos aos cargos públicos aqueles que mais se destacam em um espetáculo circense.

Parece um pouco as eleições brasileiras. Os candidatos se exibem ao público como se estivessem em um picadeiro de horrores e encenam uma comédia trágica para tentar cooptar os votos da população em sua sanha por conquistar seu espaço político. Não ganha necessariamente quem tem a melhor proposta, mas aquele que angaria a simpatia do povo. O escritor acha isso tão mesquinho, tão baixo, que descreve as pessoas desta gente como diminutas em estatura física, mas é claro que isso se refere também a seu aspecto moral.

E não é aí que a política brasileira se parece com essa incrível obra literária. Gulliver viajou também para um outro país, chamado Luggnagg, onde era proibido ser pobre, já que o governo local entende que se trata de um lugar próspero. Assim, sendo proibida a mendicância, os miseráveis eram sustentados pelo governo com uma pensão vergonhosa. Na narrativa, porém, acomodados com o recebimento destes valores, as pessoas deixavam de trabalhar e ficavam dependentes dos favores do governo, que controlava o povo deste jeito.

Parece nossa situação aqui. Seja com bolsa família, seja com auxílio Brasil, seja com qualquer outro tipo de migalha, o governo quer comprar corações e mentes e está disposto a pagar o preço disso. Acontece que sempre que os políticos brasileiros dão com uma mão, cobram com a outra. Todos os candidatos exaltam o quanto amam o povo apontando para a coleira que colocaram nos pescoços dos miseráveis, nenhum efetivamente diz o que será feito para libertar nossa gente desta opressão.

Também é interessante o passeio que Gulliver faz pela ilha de Balnibarbi, onde acadêmicos fazem estudos e experimentos totalmente inúteis, como transformar gelo em pólvora, construir uma casa a partir do teto, entre outros. Avessos aos conhecimentos científicos estabelecidos, eles propagam o que hoje chamamos de “fake news” e disseminam informações que contrariam a Ciência, preferindo acreditar em fofocas, crendices e mentiras. Assim, em vez de as pessoas se tornarem cada vez mais inteligentes, elas vão, na verdade, emburrecendo.

Claramente, é o que vemos hoje em dia. Quando as pessoas acreditam mais nas mensagens que recebem pelas redes sociais do que no diz a Ciência estabelecida, o conhecimento retrocede e qualquer retrocesso nesta área é um prejuízo enorme para nossa sociedade. Afinal, esse emburrecimento propaga a ignorância, que, impiedosamente, se instala e traz junto de si o preconceito desavergonhado que cria qualquer obstáculo para evolução de nossa sociedade.

300 anos atrás, Jonathan Swift jamais pensou em retratar a sociedade brasileira do começo do século XXI. Mas a verdade é que seu Gulliver não precisaria realizar tantas viagens para viver suas aventuras, era só ter vindo para o Brasil nos dias de hoje. A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Tudo o que estamos vivendo aqui é uma farsa. Não há herói em nossa história. Uma pena.

*Rodrigo Segantini é advogado, professor universitário, mestre em psicologia pela Famerp.

**Os artigos publicados com assinatura não manifestam a opinião de O Defensor. A publicação corresponde ao propósito de estimular o debate dos problemas municipais, estaduais, nacionais e mundiais e de refletir as distintas tendências do pensamento contemporâneo.

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